o tradutor, amor e dor



Só digo uma coisa: esse livro faz 50 Tons de Cinza parecer estória infantil. Mentira, não vou dizer só isso não.

No post anterior eu contei sobre a minha saga na Bienal do Livro. O bom em eventos como esse é achar aquela pilha de livros em promoção e sair caçando títulos que chamem a atenção. Nessas horas não dá pra ficar analisando muito, lendo contracapas e decidindo o que levar. Rola uma vibe muitos mais instintiva: você tem que bater o olho no título e na capa, e decidir na lata se vai ou não levar. Esse esquema acaba sempre me levando a comprar alguns livros que eu talvez não comprasse caso tivesse tempo pra analisar a aquisição. E muitas vezes, como nesse caso, a obra acaba superando as minhas expectativas.

Levei pra casa Hotel Íris (Leya, 2011, 208 páginas) de Yoko Ogawa, sem esperar muita coisa, afinal paguei apenas R$10 pela obra. Razões da compra: as cores vivas da capa e o fato de ser uma obra japonesa (percebi que eu nunca tinha lido nada de um escritor dessa nacionalidade). Resultado: devorei o livro em 3 dias.

O livro conta a estória de Mari, uma jovem de 17 anos que trabalha no hotel que dá nome ao livro pertencente a sua mãe, herança do avô já falecido. A garota não sai, não estuda, não tem amigos e não sabe o que é diversão. Tudo o que Mari faz é trabalhar na recepção do hotel e obedecer a sua mãe, que praticamente a trata como escrava. Essa era a sua vida, até que um incidente ocorre no hotel entre um hóspede e uma prostituta. O homem desperta um interesse repentino na jovem, que fica obcecada pela única frase por ele proferida em meio ao barraco: "Cala boca, sua puta".

Bom, dai já dá pra perceber que Mari não é a adolescente mainstream que você encontra por aí. Dias após o evento no hotel, ela acaba encontrando o autor da frase tão "singela" que despertou sua atenção e o segue pelo centro da cidade. Ele percebe, sem muita dificuldade, que está sendo seguido e reconhece a garota do hotel. Os dois acabam trocando algumas palavras e quase que instantaneamente, cria-se um vínculo entre eles. Desse primeiro encontro, desenvolve-se uma rotina de cartas que ele escreve pra ela diariamente e encontros que ocorrem toda semana, sempre no mesmo horário e no mesmo local.

Enquanto Mari é apenas uma adolescente ingênua que ainda não sabe muito o que esperar da vida, o homem é justamente o contrário disso. Só no final do livro eu reparei que em nenhum momento ela diz o nome dele, ela apenas refere-se a sua pessoa como "o tradutor". Essa era sua profissão: traduzir obras do russo para o japonês. O tradutor mora sozinho numa ilha próxima a cidade em que fica o Hotel Íris, é viúvo e não cultiva em sua vida muitas amizades. Ah, eu já disse que ele tem tipo 70 anos e pode ser o assassino da própria esposa? Pois é!

A relação deles em público é quase casta. O tradutor trata Mari como uma boneca de porcelana que poderia a qualquer momento quebrar-se em mil pedaços. Ele sempre anda com ela com o braço sobre seus ombros de forma delicada, preocupado a todo momento com o seu bem estar. Já entre quatro paredes, ocorre justamente o contrário. Em um de seus encontros, o tradutor leva a garota para sua casa na ilha e mostra a ela um novo lado seu, bem mais parecido com o do homem que proferiu aquela palavras naquela noite no hotel. A princípio a jovem recua, diz querer ir embora, mas apenas para tentar provocar nele ainda mais aquele lado sombrio e sádico. Era esse o homem que ela esperava encontrar ali.



O tradutor não usa algemas confortáveis em quartos de couro, nem ata suas mãos com gravatas de seda. Ele utiliza cordas, cadeiras, tapas e chutes. E isso não a afugenta, pelo contrário, a faz sempre voltar querendo mais. Essa é a relação entre os dois, uma relação de extrema dominação, de punição e violência. Mari consente a cada ato humilhante, ela não está ali a força, mas encontra prazer na dor que lhe é infligida, é assim que ela reconhece o amor. Masoquista de carteirinha.

A estória desse relacionamento vai se desenrolando, mostrando as camadas e nuances dessa relação tão brutal. Outros personagens fazem parte da trama, como a empregada do hotel que descobre sobre o caso de Mari e atormenta a vida da garota, sua mãe insensível que não tem a menor ideia do que se passa na vida da filha, o sobrinho do tradutor que é arquiteto e não fala por não ter língua, entre outros.

A história se desenvolve num ritmo viciante, instiga o leitor a querer saber qual será o próximo acontecimento. Os personagens tem cada um sua própria complexidade, e você aos poucos vai conhecendo suas personalidades e motivações. O tradutor e Mari encontram um no outro aquilo que os traz a vida, que os despertam de suas rotinas medíocres e os fazem ansiar pelo momento seguinte. De quatro, nua, colocando as meias nos pés dele usando apenas sua boca, ela deixa de ser a garota infeliz por de trás do balcão do hotel, e ele deixa de ser o velho solitário de quem ninguém sentia falta. O final é trágico e dramático, e não poderia ser diferente.

Yoko Ogawa é uma premiada escritora japonesa que publicou mais de 20 obras literária, algumas das quais foram até mesmo adaptadas para o cinema. Hotel Íris foi publicado em 1996. A obra foi traduzida do japonês para o francês e do francês para o português. Leitura mais do que recomendada.


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